O internamento foi uma experiência dolorosa. Fiquei sozinha num ambiente desconhecido. Felizmente tinha duas companheiras de quarto, ambas com anorexia, que me acolheram e reconfortaram. Aos poucos fomos desenvolvendo amizade o que fez com que não me sentisse tão desamparada. O pior foi quando no primeiro fim-de-semana elas tiveram autorização para ir a casa e eu tive que ficar sozinha. Foi-me explicado que durante 15 dias não poderia sair do hospital o que significava que, entre o fim de tarde de sexta-feira e a noite de domingo estava entregue aos meus pensamentos. Também não podia ter telemóvel, precisava de permissão para fazer chamadas do telefone do serviço e os meus pais só me podiam ligar à noite.
Em parte até me sentia aliviada por não ter que falar com eles porque afinal a conversa acabava sempre da mesma forma. Acabava por falar com eles mais porque sabia que o Rodrigo passava todos os dias lá em casa para saber de mim. Era dele que mais sentia falta. Era o meu companheiro, o meu confidente. Para além de namorado era o meu melhor amigo, no fundo, acho que era o meu único amigo porque tratei de afastar os restantes.
Os dias passavam devagar. Contávamos as horas para a próxima refeição, comíamos e esperávamos pela seguinte. Nos intervalos entre as refeições falávamos, riamos, brincávamos. Eu aproveitava para ler, pintar e escrever cartas que enviava pelos correios para o Rodrigo. Também recebia cartas dele, que lia e relia vezes sem conta. Ainda as tenho todas guardadas com muito orgulho.
Todas as quintas-feiras tínhamos que nos pesar, antes do pequeno almoço, para ver o aumentado de peso. Aprendemos a boicotar um pouco as pesagem na esperança que isso significasse que iríamos para casa mais cedo. Íamos para a balança de bexiga cheia e bebíamos um litro de água antes. Todas as gramas interessavam para chegarmos ao peso que nos permitiria ir para casa.
A nossa relação com a comida continuava a ser problemática. As refeições demoravam uma eternidade e eram feitas em silêncio. Nós esforçávamos-nos para comer tudo mas era difícil. Eu aprendi a fazer batota também na comida. Deitava o iogurte do meio da manha inteiro para o lixo. À noite fingia que estava a dormir quando me vinham dar a ceia, assim deixavam-me um pacote de leite que eu despejava pelo ralo do lavatório.
Apesar das falcatruas o peso ia subindo. As minhas amigas tiveram alta e coube-me a acolher outras meninas. Ao mesmo tempo vim a conhecer uma homónima que frequentava as consultas externas. Travamos uma amizade instantânea. Ela ia visitar-me muitas vezes, contava-me tudo o que estava a passar. Eu tentava dar-lhe coragem para pelo menos tentar aumentar um pouco o peso. Nunca tinha visto ninguém tão magra, tinha quase um metro e oitenta e pesava quarenta quilos.
Mais tarde invertemos papeis. Eu tive alta e ela acabou por ser internada. Passei a ir eu visita-la. Contudo esteve lá pouco tempo porque recusou o tratamento. Como já era maior de idade não poderia ser mantida contra a sua vontade. Recebi, uns dias mais tarde, uma carta por parte dos pais a informarem-me que tinha acabado por sucumbir à doença. Chorei. Julguei-me uma má amiga por não ter sido capaz de a ajudar. Senti-me revoltada pela forma como a carta reflectia um certo alivio por parte dos pais. Depois percebi que deve ter sido um alivio para aqueles pais. Deixaram de ver a sua filha a morrer um bocadinho de cada vez. Deixaram de tentar incutir-lhe juízo. Deixaram de ter medo que morre-se caída nalgum canto.